O tempo nas "Confissões", de Santo Agostinho

Uma das mais conhecidas abordagens sobre o tempo na história da filosofia é a de Santo Agostinho. À pergunta “que é, pois, o tempo?”, Agostinho responde, em suas Confissões: “Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” (AGOSTINHO, 1980, p. 265) 

Para Agostinho, a dificuldade reside não apenas em exprimir ou traduzir por palavras o seu conceito, mas também em apreendê-lo no próprio pensamento. As três divisões do tempo em passado, presente e futuro não constitui nenhum problema na vida cotidiana. Todos se entendem perfeitamente em relação ao tempo e sua passagem. Mas a conceituação do problema em sua forma clássica e socrática, perguntando “o que é isso?”, constitui um problema filosófico insuperável para o filósofo de Hipona.

Uma das questões mais importantes na discussão de Agostinho é sobre a existência do passado e do futuro. Se o passado já não existe e o futuro ainda não veio, de que modo existem estes dois tempos? E o presente, se fosse sempre presente e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas eternidade. Ele então se coloca a questão: 

Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? Para que digamos que o tempo verdadeiramente existe, porque tende a não ser?. (AGOSTINHO, 1980, p. 265)

O centro do problema colocado por Agostinho é, portanto, a existência do tempo, o seu ser. No entanto, tal colocação suscita também problemas ontológicos. 

Se o passado e o futuro não existem, o que dizer também das próprias coisas passadas e futuras? Agostinho se indaga onde elas estão, se de fato existem. Evocando novamente a dificuldade de se responder a este tipo de problema, ele afirma ter uma única certeza: elas só podem estar no presente. Pois, se são futuras, ainda não estão lá; e se são pretéritas, já não estão lá. Mesmo que narremos os acontecimentos do passado na memória, este relato não são as próprias coisas, “mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígio. ” (AGOSTINHO, 1980, p. 269). Assim, a infância de todo adulto, por exemplo, que já não existe no presente, existe no passado que já não é. Porém, sua invocação na memória é vista no tempo presente, pois ainda está na memória.

Quanto às ações futuras, nós as premeditamos na maior parte do tempo, afirma Agostinho. E esta premeditação certamente é presente, ao passo que a ação premeditada ainda não existe, pois é futura. Apenas quando empreendemos o que foi premeditado é que a ação então existirá, pois já não é futura, mas presente. Quando se diz, portanto, que se veem os acontecimentos futuros, não se veem os próprios acontecimentos ainda inexistentes, mas sim suas causas, ou os prognósticos já dotados de existência. Um exemplo seria a antecipação, no pensamento, do nascer do sol. Ao avistar a aurora predizemos que o sol nascerá. O que se vê é presente, o que se anuncia, é futuro. Não é o próprio sol que é futuro, pois este já existe, mas sim o seu nascimento, que ainda não se realizou. Mas a aurora não é ainda o nascimento do sol, e nem sua imagem formada em meu espírito. Por conseguinte, conclui Agostinho, as coisas futuras ainda não existem. (AGOSTINHO, 1980, p. 270)

O que fica claro nesta análise, afirma Agostinho, é que não há tempos futuros e nem pretéritos, sendo impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. O mais exato seria dizer que os tempos são: presente das coisas passadas, presente das presentes, e presente das futuras. Pois estes três tempos existem em nossa mente, enquanto que não podemos afirmar nada sobre sua existência fora dela.

A abordagem de Agostinho sobre o tempo como um continuum infinitamente divisível é fortemente influenciada por Aristóteles e pelos estóicos. (KNUUTTILA, p. 111) Para o filósofo de Hipona, o único tempo realmente existe é o presente, embora este não tenha duração. O tempo seria, assim, uma sucessão ininterrupta de instantes em que o passado se torna presente e cede lugar ao futuro. Não há unidades indivisíveis de tempo, embora os espaços de tempo sejam mensuráveis. (O´DALY, 1999, p. 416) 

O tempo é algo da ordem da alma, ou de natureza psicológica. Segundo Reale e Antiseri (2007, p. 97), embora tendo uma ligação com o movimento, o tempo não está no movimento e nas coisas em movimento, mas sim na alma. Conforme se revela estruturalmente ligado à memória, à intuição e à espera, como vimos anteriormente em relação às coisas passadas, presentes e futuras, o tempo é predominantemente uma distentio animi, ou “extensão da alma”.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

KNUUTTILA, SIMO. Time and creation in Augustine. In: The Cambridge Companion do Augustine. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

O´DALY, GERARD. Augustine. In: Routledge History of Philosophy: From Aristotle to Augustine. Vol 2. London: Routledge, 1999.

REALE, GIOVANNI; ANTISERI, DARIO. História da Filosofia: Patrística e Escolástica. 3ª ed. São Paulo: Paulus, 2007.


0/Deixe seu comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem