Problemas do conceito de "patriarcado" no feminismo marxista

A aliança entre o feminismo e o pensamento de esquerda, especialmente o marxista, não é de forma alguma natural. O feminismo, segundo a socióloga inglesa Michèle Barrett, é um movimento político cujas origens remontam ao feminismo de direitos iguais da tradição liberal burguesa e ao feminismo radical não-socialista. A relação entre o feminismo marxista e os de outras orientações teóricas apresenta, por isso, inúmeras dificuldades de síntese, residindo uma das principais delas no conceito de patriarcado.

Em Women’s oppression today: problems in marxist feminist analysis, Michèle Barrett afirma que o termo patriarcado foi tomado pelo sociólogo Max Weber para descrever uma forma particular de organização familiar na qual o pai dominava os outros membros de uma extensa rede de parentesco e controlava a produção econômica da família. Sua ressonância no movimento feminista repousa, no entanto, na teoria desenvolvida pelas primeiras feministas radicais e principalmente por Kate Millet, de que o patriarcado seria uma categoria muito mais abrangente de dominação masculina em geral.

A posição de Millet, segundo Barrett, implica que as divisões de classe – como aquelas desenvolvidas pelo marxismo entre burguesia e proletariado – são relevantes apenas para os homens. Ela nega que existam diferenças significativas entre mulheres. Seu projeto é o de estabelecer um sistema fundamental de dominação – o patriarcado – que seja analiticamente independente do modo de produção capitalista ou de qualquer outro.

A teoria de Millet se aproxima da posição de Shulamith Firestone no sentido de que concede não apenas independência analítica à dominação masculina, mas também primazia analítica. O objetivo de Firestone, afirma Barrett, é substituir as classes sociais pelo sexo como motor da história. Firestone inclusive parafraseia Engels da seguinte maneira: “toda a história... é a história da luta de classes. Estas classes da sociedade em conflito são sempre o produto dos modos de organização da unidade da família biológica para a reprodução da espécie [...] A organização sexual-reprodutiva da sociedade sempre fornece a base real, a partir da qual podemos explicar toda a superestrutura das instituições econômicas, jurídicas e políticas, assim como das religiosas, filosóficas e outras ideias de um determinado período histórico.”

Barrett afirma que isso levanta um problema encontrado com frequência no uso do termo “patriarcado” por estas primeiras feministas radicais: elas não apenas invocam uma categoria aparentemente universal e trans-histórica de dominação masculina, nos deixando com pouca esperança de mudança, como também, frequentemente, baseiam esta dominação em uma suposta lógica de reprodução biológica. Para Michèle Barrett, a posição destas primeiras feministas radicais é reacionária. Em termos filosóficos elas são reducionistas, no sentido de que subsumem complexos fenômenos construídos social e historicamente sob a simples categoria de diferença biológica. Se certas formas de relações sociais são “naturalmente” dadas, há pouco que podemos fazer para alterá-as.

Uma tentativa de articular o conceito de patriarcado de um ponto de relações sociais, e não biológicas, foi realizada por Christine Delphy e outras autoras. Delphy utiliza o exemplo de uma mulher divorciada de um homem burguês para ilustrar um sistema de exploração patriarcal que penetra além das divisões de classes: “apesar de o casamento com um homem da classe capitalista elevar o padrão de vida de uma mulher, este casamento não a torna um membro daquela classe. Ela própria não detém os meios de produção. [...] Na ampla maioria dos casos, mulheres de homens burgueses cujos casamentos terminam devem ganhar sua própria vida como mulheres assalariadas...” Delphy argumenta que a posição de classe das mulheres deve ser entendida em termos da instituição do casamento, o qual ela entende como um contrato de trabalho. Seu argumento, portanto, é o de que a base material da opressão da mulher reside nas relações de produção patriarcais, e não capitalistas. A dificuldade aqui, segundo Michèle Barrett, é que à categoria de patriarcado é concedida uma independência analítica em face ao modo de produção capitalista, mas ela não explica qual a relação entre ambos.

Um problema geral com o conceito de patriarcado, segundo Barrett, é que ele não é apenas resistente à investigação dentro de um particular modo de produção, mas é também sugestivo de uma opressão universal e trans-histórica. Assim, usar o conceito significa frequentemente invocar uma dominação masculina geral sem ser capaz de especificar seus limites históricos, alterações ou diferenças. Para uma abordagem feminista marxista, cuja análise deve se basear em análises históricas, seu uso frequentemente apresentará problemas específicos.

Algumas tentativas contemporâneas tentam retratar, de forma geral, o próprio capitalismo como “patriarcado”, mas estas posições apresentam dois problemas principais. O primeiro é que o patriarcado é colocado como um sistema de dominação completamente independente da organização das relações capitalistas, e, portanto, as análises caem em um modo universalista e trans-histórico que pode evocar um biologismo. Quando são feitas tentativas de constituir o patriarcado como um sistema de dominação masculina em relação ao modo de produção capitalista, estas frequentemente naufragam na inflexibilidade e nas exigências de autonomia de que o conceito é suscetível. Em segundo lugar, o conceito de patriarcado, como frequentemente apresentado, revela uma confusão fundamental entre o patriarcado como o domínio do pai, e o patriarcado como a dominação das mulheres pelos homens. Ambos os problemas podem ser vistos em tentativas de usar o conceito de patriarcado em conjunto com uma análise marxista.

Barrett analisa também a posição de Zillah Einsenstein, que define o patriarcado como precedendo o capitalismo, e existindo hoje no “poder do masculino através de papéis sexuais” e como institucionalizado na família. Para a socióloga inglesa, o que não fica claro, no entanto, é em que medida o patriarcado, definido desta maneira, se constitui como um sistema autônomo, já que Einsenstein se refere a ele apenas em relação às funções que ele desempenha para o capital. “O capitalismo usa o patriarcado e o patriarcado é definido pelas necessidades do capital”. Tal afirmação dificilmente pode coexistir com a reivindicação de que o capitalismo seja um patriarcado. O uso que Zillah faz do termo, afirma Barrett, não resolve o problema da independência analítica do “patriarcado” em relação ao capitalismo: a análise vacila entre a afirmação do patriarcado como um sistema de poder masculino externo ao capitalismo e o argumento de que a organização de relações patriarcais são funcionais para o capitalismo.

Roisin McDonough e Rachel Harrison, por sua vez, tentam utilizar o termo patriarcado em um contexto materialista. Ambas consideram o patriarcado como requerendo uma dupla definição: primeiro, do controle da fertilidade e da sexualidade da mulher no casamento monogâmico, e segundo, na subordinação econômica da mulher através da divisão sexual do trabalho (e da propriedade). Elas argumentam que a família patriarcal enquanto tal não existe mais, mas que o patriarcado pode ser dito como existente na operação destes dois processos. Sua tese central é a de que o patriarcado, enquanto conceito, pode ser historicizado através do argumento de que, no capitalismo, as relações patriarcais assumem a forma ditada pelas relações capitalistas de produção. Barrett resume esta formulação como o argumento de que a opressão das mulheres no capitalismo apresenta diferentes contradições para as mulheres dependendo de sua classe social. Mas a definição de classe social destas autoras é deficiente, afirma Barrett, não tendo bases nem marxistas e nem sociológicas, pois elas afirmam que “uma mulher herda a posição de classe do seu marido, mas não a relação equivalente aos meios de produção”. O que não fica claro para Barrett é o que estas autoras estão querendo dizer com patriarcado, pois se as relações patriarcais assumem a forma de relações de classes no capitalismo, mesmo assim elas não resolvem a questão da efetividade do patriarcado como determinante da opressão da mulher neste modo de produção.

Este apanhado histórico efetuado por Barret tem pelo menos dois objetivos: 1) mostrar as vicissitudes a que o conceito de patriarcado foi submetido por diferentes autoras de diferentes linhas de pensamento e 2) apontar os problemas de cada definição quando confrontadas à luz do pensamento marxista. Estes problemas, na opinião de Barret, são sérios, o que significa dizer que não podem ser considerados como meros caprichos conceituais sem incidência na conformação e na organização de um movimento feminista marxista.

O conceito de patriarcado, um dos mais importantes para o feminismo, é exemplo de que não existe uma aliança natural entre este e o marxismo. Embora o termo "patriarcado" possa descrever bem algumas formas de sociedade nas quais o poder econômico e social é investido no pai enquanto tal, ele não é necessariamente um conceito útil para explorar a opressão das mulheres em sociedades capitalistas, e as dificuldades dos trabalhos feministas marxistas sobre patriarcado e feminismo ilustram este ponto. 

Para Barrett, parece admissível referir-se a ideologia patriarcal, descrevendo aspectos específicos das relações masculino-feminino no capitalismo, mas enquanto substantivo, o termo “patriarcado” apresenta inúmeras dificuldades para uma análise que tente relacionar a opressão da mulher às relações de produção no capitalismo.

Referência

BARRETT, Michèle. Women's oppression today: problems in marxist feminist analysis. 5 ed. London: Verso Books, 1986.

2/Deixe seu comentário

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem