A imutabilidade de Deus em "A República", de Platão, e a análise lógica de Boole

Argumentos longos e complexos constituem um desafio à verificação de sua formação e validade, demandando tempo, atenção e rigor para que sejam testados. Apresentamos, abaixo, um exemplo de como aplicar uma análise lógica em um argumento extenso a fim de verificar sua coerência. O texto foi extraído do Livro II de A República, de Platão, e apresenta um diálogo entre Sócrates e Adimanto, no qual o filósofo de Atenas argumenta que Deus é imutável. Logo após apresentamos a formalização deste argumento realizada pelo lógico George Boole, já no século XIX, a qual revela a impecável  forma do raciocínio de Platão.

Sócrates — Vejamos agora a segunda regra. Acreditas que Deus seja um mágico capaz de assumir, perfidamente, formas variadas, ora de fato presente e transformando a sua imagem numa infinidade de figuras diferentes, ora enganando-nos e mostrando de si mesmo apenas simulacros sem realidade? Não será antes um ser simples, de todo incapaz de deixar a forma que lhe é própria?
Adimanto — Não sei o que responder-te.
Sócrates — Não concordas, ao menos, em que, se um ser deixa sua forma que lhe é própria, tal transformação deve, forçosamente, provir de si mesmo ou de outro ser?
Adimanto — Sim, sem dúvida.
Sócrates — Pois bem, as coisas melhor constituídas não são as menos sujeitas a ser alteradas e movidas por uma influência estranha? Pensa, por exemplo, nas alterações causadas no corpo pelo alimento, pela bebida, pela fadiga, ou na planta pelo calor do Sol, pelo vento e por outros acidentes que tais; o indivíduo mais são e vigoroso não é o menos atingido?
Adimanto — Sim.
Sócrates— E, da mesma maneira, não é a alma mais corajosa e sábia a que menos é perturbada e alterada pelos acidentes exteriores?
Adimanto — Por certo.
Sócrates — Pelo mesmo motivo, de todos os objetos produzidos pelo trabalho humano, edifícios, vestuário, se forem bem confeccionados e em bom estado, alterar-se-ão o mínimo por efeito do tempo e dos demais acidentes.
 Adimanto — E exato.
Sócrates — Em geral, todo o ser perfeito, que tira a sua perfeição da natureza, da arte ou das duas, está menos sujeito às transformações vindas de fora.
Adimanto — Assim é.
Sócrates — Mas se Deus é perfeito, tudo que se refere à sua natureza é em todos os aspectos perfeito?
Adimanto — Sem dúvida.
Sócrates — Assim, pois, Deus é o menos sujeito a receber formas diferentes.
Adimanto — Certamente.
Sócrates — Seria, então, por si mesmo que Ele mudaria e se transformaria?
Adimanto — Evidentemente, seria por si mesmo, se é certo que Ele sofre tais mudanças.
Sócrates — Mas Ele toma uma forma melhor e mais bela ou pior e mais feia?
Adimanto — Forçosamente, toma uma forma pior, porque não seria apropriado dizer que falta a Deus algum grau de beleza ou de virtude.
Sócrates — Muito bem. Mas, se assim é, acreditas, Adimanto, que um ser se torna voluntariamente pior em qualquer aspecto que seja — quer se trate de um deus, quer de um homem?
Adimanto — E impossível.
Sócrates — Então, também é impossível que um deus concorde em transformar-se; sendo cada um dos deuses o mais belo e o melhor possível, permanece sempre na forma que lhe é própria.

Análise lógica do argumento realizada por Boole:

- Se Deus muda, então Deus é mudado por Deus ou Deus é mudado por outrem.
- Se Deus está no melhor estado, então Deus não é mudado por outrem.
- Deus está no melhor estado
- Se Deus é mudado por Deus, então Deus é mudado para um estado pior.
- Se Deus age de livre vontade, então Deus não é mudado para um estado pior.
- Deus age de livre vontade.
- Deus não muda.

A = Deus muda
B = Deus é mudado por Deus
C = Deus é mudado por outrem
D = Deus está no melhor estado
E = Deus é mudado para um estado pior
F = Deus age de livre vontade

A → (B ∨ C)
D → ¬ C
D
B → E
F → ¬ E
F
______________
¬ A


A análise de Boole chega a ¬ A, ou "não Deus muda", que é exatamente a conclusão de Sócrates: "Então, também é impossível que um deus concorde em transformar-se; sendo cada um dos deuses o mais belo e o melhor possível, permanece sempre na forma que lhe é própria."

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