Como estudar a filosofia marxista?



Quem deseja estudar e compreender a filosofia marxista não pode perder de vista um primeiro princípio básico: a filosofia marxista é filosofia. O pensamento de Marx envolve também outras disciplinas, tais como sociologia, história e crítica da economia política. Para estudar especificamente a filosofia de Marx, no entanto, é necessário ter claro que o método para se estudar cada uma dessas áreas é diferente, e que a filosofia possui suas próprias particularidades.

E o que é filosofia? Embora os currículos do ensino médio e quase todos os cursos de graduação tenham uma disciplina chamada “filosofia”, pouca ou nenhuma noção se pode desenvolver a partir daí sobre o que realmente ela é. E a dificuldade se torna ainda maior quando esta experiência propicia a falsa sensação de pelo menos “saber do que se trata” o assunto, pois tomar conhecimento de alguns temas abordados por alguns filósofos não é a mesma coisa que saber o que é - ou como fazer - filosofia.

E por não se saber o que caracteriza a atividade filosófica enquanto tal, tende-se, às vezes, a estuda-la com métodos das ciências humanas, coisa que a filosofia também não é. Observe, por exemplo, o nome de diversas faculdades dentro das universidades: já percebeu que é quase sempre algo como “Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas”? Sim, pois são duas coisas distintas: filosofia é uma coisa, ciências humanas, outra.

Mas não vamos tentar neste momento abordar diretamente o que é filosofia, pois além desta pergunta já ser em si um grande problema filosófico, não é exatamente necessário para estas breves notas sobre como estudar filosofia. Nosso objetivo aqui é apenas apontar algumas incompreensões que são de grande prejuízo para o estudo da filosofia em geral e, particularmente, ao estudo da filosofia marxista, para com isso limpar o terreno e facilitar o processo de quem deseja entrar nesta seara.

Um ponto muito importante é que filosofar não é acumular conhecimento. A aquisição de uma vasta cultura é um pressuposto para se fazer filosofia, mas ela não se resume a isso. Não se “sabe” filosofia por já ter ouvido falar que Platão desenvolveu a teoria do Mundo das Formas, que Tomás de Aquino elaborou as Cinco Vias para demonstrar a existência de Deus ou que Descartes disse “Penso, logo existo”. Da mesma forma, não se está estudando filosofia marxista ao saber enumerar quais são “as leis da dialética”, como se essas fossem leis da física que bastaria aplicar à realidade e pronto, está tudo feito. Kant já afirmava que não se aprende filosofia, só se aprende a filosofar. Com isso ele ressaltava o caráter eminentemente prático da filosofia, no sentido de que ela é um fazer, e não mera acumulação de conhecimento. E foi o que Karl Marx, como filósofo, também fez.

Ao se estudar filosofia é um erro isolar determinado autor de sua época, e evitar isso é de fundamental importância para a filosofia marxista. Perde-se muito da riqueza do pensamento filosófico de Karl Marx ao não se compreender o contexto de onde ele surgiu, ou ao se limitar a resumos e manuais, recorrendo-se a chavões do tipo “Marx inverteu Hegel” sem saber o que isso significa na verdade. Embora isso pareça óbvio aos marxistas, é dessa maneira que a maioria dos militantes estuda a obra filosófica de Marx: fora do contexto intelectual, filosófico da época, como se uma ou duas citações de Hegel bastassem para “contextualiza-lo”.

Em suas obras, Marx está sempre em diálogo com autores de sua época, e quando lemos apenas suas obras sem ler, ao mesmo tempo, Hegel e o idealismo alemão, por exemplo, tem-se a impressão de que ele estaria sendo “contra tudo que estava lá”. E não é bem assim. Ao não ler diretamente as obras de Hegel, não sabemos em que aspectos ambos se aproximam. E ao ler apenas as obras de Marx, tomamos nota muito mais das diferenças do que das aproximações, pois o importante para Marx, em seus textos, era mostrar em que ele era diferente de Hegel, em que ele estava definitivamente rompendo, já que as semelhanças eram muito mais claras para o público da época, já envolvido no debate, do que para nós hoje. Ao se ler os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, por exemplo, é muito evidente como Marx se expressava no espírito e nos termos do hegelianismo. Sua análise do proletariado como “classe em si” e “classe para si” é um claro exemplo disso, mas no texto ele não diz: “neste ponto estou utilizando categorias hegelianas para analisar o proletariado”. E quando não temos familiaridade com a obra de Hegel, isso simplesmente passa batido.

Outro exemplo da importância de se entender o contexto intelectual se encontra no fato de Marx não ter sido o primeiro filósofo a estudar economia. Ora, o próprio Hegel já era um leitor das primeiras obras econômicas que surgiram em sua época, embora ali o capitalismo estivesse menos desenvolvido do que na época de Marx. De certo modo pode-se afirmar que um dos motivos que levou Marx a percebeu a importância da economia foi sua formação filosófica hegeliana. Ao contrário da pecha de “idealista” que lhes pregam, no sentido de que Hegel e todo o idealismo alemão só se preocupavam com as “ideias”, Hegel era um pensador muito preocupado com o concreto, com a efetividade (“Wirklichkeit” é um termo muito comum em sua obra), de modo que ele chegou a dizer que “a leitura do jornal é a oração matutina do homem moderno”. E o filósofo Fichte também se envolvia em movimentos políticos e buscava elevar o nível de consciência do povo para promover mudanças sociais na Alemanha. Assim, Marx não foi nem o primeiro filósofo preocupado em transformar a realidade, e nem o primeiro a estudar economia, embora tenha sido o mais consequente desses.

Dessa maneira, ao se ler Marx no espírito do próprio marxismo, compreende-se que ele não é um surgimento abrupto, anômalo e desconectado de seu próprio tempo, e que tampouco estão esgotadas todas as contribuições anteriores ou posteriores a Marx. Pois o pensamento muito comum de que “tudo anterior a Marx foi superado, agora basta estudar Marx” é falso e leva ao dogmatismo, ou seja, ao inimigo mortal da filosofia.

Lênin foi claro sobre a necessidade de se estudar Hegel quando afirmou: “Não se pode compreender plenamente O capital de Marx, e particularmente o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel. Portanto, meio século depois de Marx, nenhum marxista o compreendeu!”. Lênin inclusive deixou algumas anotações que foram publicadas posteriormente sob o título Cadernos sobre a dialética de Hegel.

E não apenas isso, mas lemos também na Biografia ilustrada de Lênin (Elio Bolsanello, edições Manoel Lisboa) que em seus últimos dias, já bastante doente mas preocupado com a consolidação ideológica do partido, Lênin visitou o Kremlin pela última vez no dia 18 de outubro de 1923, “pôs em ordem seus cadernos, pegou três volumes de Hegel e levou-os consigo...” (grifo nosso). Isso é, para aprofundar sua compreensão do marxismo, Lênin, em seus últimos dias, se preocupava em estudar Hegel.

Assim, para o estudo da filosofia é importante conhecer não só o contexto material e econômico da sociedade na qual as obras surgiram, mas também o contexto espiritual, no sentido daquilo que estava sendo produzido no campo das ideias, as quais não podem ser consideradas como meros “reflexos” do contexto material (como interpreta erroneamente certa corrente mecanicista do marxismo).

Outro ponto importante para o estudo da filosofia é o contato direto com os textos dos filósofos. O recurso a manuais não pode ser o principal meio de acesso à filosofia. Embora manuais como o Princípios fundamentais de filosofia, de Politzer, possam ter alguma utilidade como introdução, eles nunca poderão oferecer uma formação filosófica propriamente dita e nem mesmo substituir a leitura das obras de Marx. Não há atalhos para isso. Uma das características das obras de filosofia, de forma geral, é que elas só começam a ser compreendidas (de fato, e não aparentemente) por volta da quinta leitura, e isso não é diferente com os Manuscritos econômico-filosóficos ou com o A sagrada família, de Marx. Assim, o estudo da filosofia exige tempo e esforço, mas não é de modo algum impossível.

Certa vez Hegel afirmou, em uma carta, que se convencia cada dia mais da importância do trabalho teórico, e que uma vez revolucionado o mundo das representações, a realidade (Wirklichkeit) não poderia escapar também dessa transformação. Embora faltasse a Hegel o conceito de práxis que seria desenvolvido por Marx para efetuar tal transformação, percebe-se já nele certa preocupação em transformar o real, e a importância do trabalho teórico para isso. Ora, e não foi a vida e a obra de Marx um imenso e colossal esforço para interpretar a realidade e adquirir o conhecimento necessário para transforma-la? A obra mais extensa de Marx, O capital, não é uma especulação sobre como seria uma sociedade socialista, mas sim uma análise do capitalismo. E também Lênin, citando Engels em O que fazer?, afirma que a luta do proletariado se dá em três frentes: política, econômica e teórica.

A filosofia marxista deve ser estudada, portanto, como filosofia, e não como dogma, não como um conjunto de doutrinas prontas e acabadas que se esgotam no próprio Marx, pois Marx não se esgotou em si mesmo. Não reconhecer o que pode haver de verdade em toda a história da filosofia significa não compreender o próprio marxismo, que não foi uma criação ex nihilo de Marx. A superação dialética, do termo alemão Aufhebung (que não possui tradução exata para o português), pressupõe a manutenção de parte daquilo que será superado, ou seja, não é a completa aniquilação e nem é ecletismo (esperamos abordar isso em um próximo texto). Isso quer dizer que a filosofia marxista deve ser estudada dialeticamente, em seu devir, em suas múltiplas determinações e conexões. Ao estudar a filosofia marxista enquanto filosofia, e não como dogma ou livro sagrado, os marxistas poderão compreender a essência e o método daquilo que Marx realizou e continuar, segundo o espírito do mestre, aplicando e desenvolvendo a tradição filosófica do proletariado. 

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